A Chama Adormecida do Special One
- Admin
- 30 de ago.
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O legado de José Mourinho numa luta contra si próprio.

Poucos treinadores souberam construir uma aura tão marcante como José Mourinho. A sua figura sempre ultrapassou o campo: carismático, teatral, estratega e mestre da comunicação, conquistou títulos e corações ao longo de duas décadas. Era um líder que transformava plantéis em exércitos, que inspirava convicção absoluta e desafiava o status quo. A recente saída do Fenerbahçe e consequente regresso a Portugal, porém, é mais um sinal de que o seu modelo de liderança já não encontra o mesmo eco de outros tempos. Não é apenas uma história do declínio de um profissional, mas também de mudança de um desporto e de uma geração.
Mourinho cresceu para o estrelato com um estilo comunicacional direto, por vezes impiedoso, mas sempre calculado. A dureza com que criticava jogadores em público era entendida como exigência, como estímulo para ir além do que pareciam capazes. Nomes como Terry, Lampard, Milito ou Materazzi acatavam essa postura porque viam nela uma forma de proteção e de motivação. Esse modelo funcionava num tempo em que a disciplina e a hierarquia eram valores incontestáveis. O futebol atual, contudo, assenta noutros códigos. Os jogadores de hoje cresceram num contexto diferente, onde a individualidade tem tanto ou mais peso do que o coletivo. São atletas que convivem desde cedo com a exposição mediática, com contratos milionários e com a valorização da sua imagem pessoal. São também mais sensíveis ao discurso e menos tolerantes a formas de comunicação que soam a ataque. O que antes era visto como exigência, hoje é rapidamente interpretado como desrespeito. O tom duro, o discurso do “nós contra o mundo” e a crítica pública perderam eficácia. Os atletas tornaram-se mais difíceis de gerir: exigem proximidade, empatia e validação constante, e raramente respondem bem a uma liderança que os obriga a sacrificar-se incondicionalmente pelo grupo. Mourinho não soube adaptar-se totalmente a essa realidade. Não há dúvidas de que continua a ser um excelente treinador, não perdeu essa capacidade ao longo dos anos. Fez um excelente trabalho na Roma e até antes no Manchester United, adquirindo experiência que certamente não tinha há 10 ou 15 anos atrás. Mas a arte de treinar nunca foi apenas tática, depende também muito da capacidade de gerir sensibilidades, de liderança humana. Neste desencontro está umas das explicações para a sua queda gradual. Liderar hoje é um exercício diferente, onde a autoridade tradicional cedeu lugar a uma liderança mais negociada.

Mas o que prova ser mais preocupante neste momento é a sua postura para o exterior. Vemos um treinador que por vezes parece já não querer ser treinador. Nas conferências de imprensa, Mourinho está muito longe de ser o Special One provocador, que incendiava o mundo com ironia afiada e confiança desarmante. Hoje surge muitas vezes com um semblante pesado, quase resignado, como se carregasse nas palavras o peso do tempo e das desilusões. A conferência de imprensa antes da 2ª mão contra o Benfica para o play-off da Liga dos Campeões é um bom exemplo. Referiu que estava "tranquilo" para o jogo, mas que, em caso de passagem à fase de grupos, o Fenerbahçe não poderia vir a ter "grandes ambições" na competição, dando até a entender que seria preferível perder para ser relegado à Liga Europa, onde "as ambições do clube seriam maiores". A realidade até poderá ser mesmo essa, mas nunca o verdadeiro José Mourinho lhe passaria pela cabeça transmitir essa ideia de forma tão clara e óbvia, especialmente com a eliminatória completamente empatada. É evidente que depois os jogadores também sentem isso e o rendimento não é o mesmo. Em vez da convicção agressiva que fazia tremer adversários, vê-se um treinador desmotivado, derrotista e monocórdico, a reconhecer limitações, como se à espera da inevitável passagem do tempo. É impossível não sentir uma ponta de nostalgia e tristeza ao testemunhar como aquele que um dia parecia imparável já não encontra nas palavras a mesma força para inspirar.
O regresso de Mourinho a Portugal, pela porta do Benfica, surge como um desfecho quase inevitável da sua carreira recente. Depois dos gigantes europeus de outrora, as opções a esse nível escassearam em definitivo, e voltar ao futebol português acaba por ser um passo natural. Trata-se de um reencontro com o palco onde começou a afirmar-se como treinador principal, agora carregado de experiência, títulos e cicatrizes. Para o Benfica, é uma aposta de prestígio e reputação internacional; para Mourinho, a (talvez derradeira) oportunidade de provar que continua capaz e relevante, ainda que num contexto diferente daquele que o projetou.
O percurso do Special One está longe de estar encerrado. Continua a ser uma figura capital do futebol e sê-lo-á sempre, não apenas porque foi um treinador de vitórias: desafiou probabilidades, moveu montanhas pelas suas equipas e deixou no futebol uma marca de ousadia, emoção e paixão. Mesmo que o presente já não lhe sorria da mesma forma, o passado recorda-nos que houve um tempo em que parecia capaz de tornar o impossível em inevitável. Exceção feita a portistas e sportinguistas, todo o mundo do futebol ficará à espera de uma centelha, uma faísca, algo que faça incendiar de novo José Mourinho.




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