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O Treinador que não Treina Todos os Dias

  • Admin
  • 7 de jun.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 9 de jun.

Sem rotina, sem laboratório, sem tempo: o futebol de seleções é contexto e momento.

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Ser treinador de uma seleção é muito diferente de ser treinador de clube. Não apenas pelas rotinas ou pelo calendário, mas pela própria lógica que sustenta o trabalho. A função de selecionador não é de todo comparável ao conceito tradicional de treinador. Trata-se de um cargo com exigências únicas, escolhas pontuais, timing e autoridade simbólica. E é por isso que o sucesso de um selecionador obedece a regras bem diferentes das do contexto clubístico.


Num clube, há tempo. Treina-se todos os dias. Corrigem-se erros, ensaiam-se dinâmicas, criam-se rotinas. A identidade da equipa nasce do trabalho diário. Numa seleção, cada estágio dura dez dias, com dois ou três treinos completos. Tudo tem de funcionar quase à primeira. O tempo é tão curto que quem tenta complicar, normalmente falha. Por isso, o selecionador não ensina jogadores. Escolhe os que já fazem aquilo que ele precisa. O sucesso depende de saber escolher bem, ajustar pouco e comunicar de forma clara. O modelo de jogo não pode ser demasiado elaborado. Não se trata de formar — trata-se de encaixar. Mais do que um arquiteto de jogo, o selecionador é um afinador.

Alguns selecionadores aproveitam a filosofia ou cultura tática dominante no país dos principais clubes formadores. Quando o tempo de treino é curto, alinhar-se com um sistema já absorvido pelos jogadores no dia a dia pode ser uma enorme vantagem. O exemplo mais proeminente é o da Espanha 2008-2012, cuja identidade se fundiu com a do Barcelona de Guardiola — o tiki taka, com vários jogadores-chave (Xavi, Iniesta, Busquets, Piqué) a trazerem consigo os automatismos do clube. Quando há esse talento e rotinas já assimiladas, este alinhamento reduz drasticamente o tempo de adaptação e eleva o rendimento coletivo quase de imediato.


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Menos é mais


Muitas seleções optam por sistemas que exigem menos decisões táticas no momento do jogo. Bloco mais baixo, médios com funções simples, extremos mais posicionais. Isso não significa que o futebol seja sempre pior — significa apenas que o plano tem de ser mais fácil de executar com pouco treino. A prioridade não é originalidade táctica, é estabilidade funcional. Além disso, os jogadores chegam em fases muito diferentes da época. Uns vêm em pico de forma, outros com poucos minutos. O selecionador não controla esse ciclo. Trabalha com o que recebe. Não pode programar cargas, nem gerir picos físicos. Por isso, muitas decisões são mais contextuais do que ideológicas: quem está pronto, quem pode executar, quem chega com cabeça e pernas para competir, entra. Quem não cumprir estes pressupostos, está fora.


Não obstante o pouco tempo passado com os jogadores em campo, o trabalho do selecionador não se resume às semanas de estágio. Grande parte da sua carga de trabalho acontece fora do relvado, ao longo de toda a época. Os selecionadores e as suas equipas técnicas acompanham dezenas — por vezes centenas — de jogos em vídeo e ao vivo, observando jogadores espalhados por múltiplos campeonatos. O objetivo não é apenas avaliar o rendimento atual, mas entender o contexto tático de cada atleta, a evolução do seu papel nos clubes e a sua adaptabilidade ao modelo da seleção.

É um trabalho de prospeção constante, muito mais próximo de um departamento de scouting do que de um treino tradicional. Muitos selecionadores passam mais tempo em bancadas e salas de análise do que em campos de treino. A convocatória começa muito antes da lista oficial — e tem tanto de interpretação como de observação.


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Trabalho de casa


O treino de campo é curto, controlado e por vezes simbólico. As melhores seleções compensam essa limitação com preparação à distância. Os jogadores recebem vídeo antes do estágio, com instruções individuais e posicionais. Trabalha-se com clipes curtos, mapas de movimentação, princípios ofensivos e defensivos definidos com objetividade. A função do selecionador inclui cada vez mais edição e filtragem de informação, sendo que a carga emocional do contexto internacional obriga também a uma gestão comunicacional mais cirúrgica. O selecionador fala menos, mas cada palavra pesa mais.



No fundo, o treinador de clube tem o tempo do seu lado. Pode errar, testar, recuar, evoluir. O selecionador, não se pode dar a esse luxo. Cada jogo conta, e cada treino tem de produzir impacto. Um treina com rotina. O outro com urgência. Um trabalha para aprofundar. O outro para sintetizar. E é por isso que nem todos os grandes treinadores de clubes funcionam em seleções — e vice-versa.

Ambos lideram equipas. Ambos exigem leitura de jogo, gestão de grupo, clareza na comunicação. Mas a natureza das decisões é completamente diferente. O treinador de clube constrói. O selecionador edita. E no futebol de alto nível, saber o que cortar pode ser tão importante como saber o que inventar.


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