Gerrard's Rangers:O Despertar de Um Gigante Adormecido
- Admin
- 4 de abr. de 2021
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Atualizado: 7 de jun.
A caminhada do Rangers FC rumo ao primeiro título de campeão escocês desde 2011 sob o comando do lendário, mas inexperiente Steven Gerrard.

29 de abril de 2018. O Celtic bate o eterno rival Rangers por uns expressivos 5-0 e garante o seu oitavo título de campeão nacional consecutivo. Desde a despromoção do grande rival na secretaria em 2012, o campeonato escocês ficou totalmente à mercê dos católicos de Glasgow, que nos últimos 10 anos foram coroados campeões sempre com uma margem superior a 10 pontos para o segundo classificado, tendo até chegado aos 30 pontos de diferença em algumas épocas. O Rangers, de orgulho ferido, em profunda crise financeira e afundado no quarto escalão escocês, fez das tripas coração e em 2016 estava de volta ao topo. No entanto, muitos treinadores depois (entre eles o português Pedro Caixinha), apesar de nunca ter feito pior que o top 3, o Rangers não conseguia colocar os campeões nacionais em sentido e a hegemonia do Celtic permanecia intacta.
A rivalidade entre Celtic e Rangers (denominada de Old Firm) é das mais intensas do mundo e tem raízes muito para além do desporto. Com origem em finais de século XIX, consistia numa série de conflitos religiosos (católicos e protestantes), políticos (irlandeses e escoceses) e até ideológicos (conservadorismo e socialismo). Tratava-se, portanto, de uma crise de identidade nacional vivida na Escócia na época. Adeptos do Celtic estavam intimamente ligados ao catolicismo e à herança irlandesa, enquanto adeptos do Rangers eram forçosamente protestantes e de origem puramente escocesa ou britânica. Estas afinidades mantém-se até aos dias de hoje, gerando ainda grande tensão e até ódio entre adeptos de ambos os clubes. Celtic e Rangers são os dois clubes mais bem-sucedidos da Escócia, partilhando entre eles 106 dos 123 títulos de campeão nacional desde a fundação da liga escocesa em 1890, sendo que, até à despromoção do Rangers na secretaria em 2012, estes dois rivais eram os únicos a nunca terem sido despromovidos da primeira divisão. O domínio é avassalador e acaba por reforçar mais enfaticamente a rivalidade competitiva entre os dois conjuntos. Mas voltemos ao presente.
4 de maio de 2018. A partir daqui tudo foi diferente. O Rangers toma a decisão de contratar Steven Gerrard para treinador principal. A lenda do Liverpool havia-se retirado dos relvados recentemente e tinha passado o último ano na academia jovem dos reds. Não obstante o glorioso currículo como jogador, Gerrard chegava a Glasgow com pouca ou nenhuma experiência como treinador. Era uma proposta arriscada, mas que viria a compensar em pleno. Hoje o Rangers é uma equipa dominadora a nível nacional, tendo conseguido simultaneamente recuperar a sua posição respeitada no panorama europeu. Campeão nacional pela primeira vez desde 2011, impediu o 10º título consecutivo do Celtic. Como conseguiu Gerrard libertar o clube da dormência em que se encontrava e revolucionar a sua história recente? De modo a compreendermos o fenómeno Rangers, temos de compreender o fenómeno Gerrard. O inglês é um ícone do futebol mundial e apenas o seu nome por si só já atrai multidões e foi precisamente o que aconteceu desde o primeiro dia. Milhares de adeptos correram para o Ibrox Stadium para participar na apresentação do treinador mais mediático do passado recente do clube. O entusiasmo era grande e sentia-se que, tantos anos depois, algo poderia ser diferente desta vez.

Instabilidade e incerteza
É importante, antes de mais, perceber o que esperava Gerrard aquando da sua chegada. Apesar das recentes subidas de divisão, o Rangers ainda não era um clube financeiramente estável e não houve grande margem de manobra para contratações mais ousadas. O clube tinha, desde há uns anos, uma política de contratações altamente instável em formato carrossel, no qual todos os anos saiam 10 ou 11 jogadores importantes e entravam outros 10 ou 11. Tal levava à formação de um plantel continuamente desequilibrado e desfalcado. O Rangers registou uma média de 22 entradas e 22 saídas por época desde a subida à Primeira Liga até à chegada de Gerrard. Não são números estrondosos à primeira vista, no entanto grande parte do investimento (não muito modesto) era desperdiçado e convertido em empréstimos e vendas a custo zero por vezes nem um ano depois. Jogadores como Carlos Peña (3M€), Eduardo Herrera (1,7M€) e Fábio Cardoso (1,5M€), contratados por Pedro Caixinha no ano transato, são exemplos dessa má gestão. Foram apenas seis meses no clube escocês no caso de Peña, enquanto Fábio Cardoso foi vendido a custo zero no final da época ao Santa Clara. Eduardo Herrera foi emprestado imediatamente após ser contratado e ingressou numa série de empréstimos que só terminaram com a venda a custo zero ao Puebla do México em 2020. Tudo isto num ano onde o Rangers despendeu cerca de 10M€ e apenas faturou 3,5M€. São 6,5M€ investidos por um clube em situação financeira precária em ativos que um ano depois já estavam a abandonar o clube, sem qualquer retorno.
Esta metodologia não se alterou imediatamente sob o comando de Gerrard, conseguindo o treinador, no entanto, conservar jogadores chave que se mantém no clube até hoje, tais como o guarda-redes Allan McGregor, o central Connor Goldson, o lateral James Tavernier e o goleador colombiano Alfredo Morelos.

Crescimento sustentado
No meio de todas estas instabilidades, a realidade é que os resultados iam surgindo gradualmente. A solidez defensiva da equipa cresceu muito no primeiro ano de Gerrard, tendo sofrido apenas 27 golos, quase metade da época anterior (50), sendo que esse número voltou a decrescer para 19 na época seguinte. Este ano do título provou ser absolutamente excecional, com apenas 9 golos sofridos e um recorde histórico de 25 dos 38 jogos de campeonato com a baliza inviolada. Estamos a falar de uma equipa que, uns meses antes de Gerrard, tinha perdido por 5-0 e 4-0 consecutivamente com o eterno rival Celtic no espaço de duas semanas, assim como um empate alucinante (5-5) com o Hibernian na última jornada dessa época. Sob o comando de Pedro Caixinha, a ausência de identidade era total. Enquanto o Celtic (na altura liderado por Brendan Rodgers) tinha um modelo de jogo muito claro, assente na pressão alta e no passe, construindo sempre a partir de trás, com o Rangers era sempre uma incógnita se iam jogar um futebol mais apoiado ou mais direto, inclusive para os próprios jogadores. Caixinha era conhecido por orientar os treinos e a preparação para os jogos a pensar primordialmente no adversário. Se a filosofia do oponente dessa jornada assentasse, por exemplo, em jogo direto, treinava-se bolas nas costas. Era, pois, uma equipa descaracterizada, despida de uma clara identidade, que olhava sempre para o adversário antes de se focar em si própria.
Já Gerrard implementa um futebol pressionante e baseado na posse, com laterais muito agressivos na manobra ofensiva, papel esse bem desempenhado por James Tavernier e Borna Barisic. James Tavernier está em grande forma esta época e já leva 17 golos e 15 assistências em todas as competições, tornando-o no melhor marcador da equipa atrás do ponta-de-lança Morelos. São de facto números assustadores para um lateral direito.

Sede de títulos
Os progressos da equipa sob o comando de Gerrard eram evidentes, mas os títulos teimavam em aparecer. No primeiro trimestre de 2020, Steven Gerrard e o seu Rangers ainda não tinham qualquer troféu para exibir. Enquanto na Europa os escoceses encantavam e deliciavam contra equipas como FC Porto (Fase de Grupos UEL 2019/20), Benfica (Fase de Grupos UEL 2020/21) e Galatasaray (Playoff UEL 2020/21), a nível doméstico as coisas não eram tão positivas. Tanto na Taça da Escócia como na Taça da Liga, o Rangers cedia à pressão das eliminatórias (por vezes frente a equipas inferiores como Hearts, Kilmarnock e St. Mirren), enquanto no campeonato os protestantes estavam longe de tocar no seu rival Celtic. Tanto em 2019 como em 2020, os protestantes passaram a viragem do ano em posição favorável na tabela, mas, em ambos as campanhas, o ímpeto foi travado pelas paragens de inverno passadas no Dubai dois anos seguidos. Particularmente na segunda época de Gerrard, o Rangers quebrou o ritmo de forma dramática, tendo perdido 13 pontos nos 9 jogos posteriores à paragem de inverno e também afastado da Taça da Escócia pelo Hearts nos quartos-de-final. Não obstante as melhorias, eram este tipo de deslizes surpreendentes que impediam o Rangers de ser um verdadeiro candidato ao título.

Pressão, posse e velocidade
Gerrard enfrentou dois grandes desafios táticos nestes três anos na Escócia. Um deles passava por tornar a equipa intensa ofensivamente (envolvimento dos laterais, pressão alta, jogar em posse) sem perder o equilíbrio defensivo. Jogando em 4-3-3, Tavernier é basicamente mais um extremo na manobra ofensiva. É relativamente comum vermos um dos laterais do Rangers a atacar cruzamentos efetuados pelo lateral do lado contrário, o que é altamente benéfico para sobrecarregar o adversário, mas deixa a equipa vulnerável pelos corredores quando sem bola. De modo a colmatar esta fragilidade, Gerrard apresenta um meio-campo robusto, no qual dois dos médios cobrem os espaços deixados pelos laterais (normalmente Glen Kamara, Steven Davis ou Ryan Jack), ao mesmo tempo que, com bola, exploram transições no último terço. O terceiro elemento do meio-campo (mais adiantado) faz a ligação entre o extremo esquerdo e o lateral projetado. Isto permite ao Rangers apresentar-se numa espécie de 2-5-3 a atacar, fazendo os laterais parte dos 5 do meio-campo como médios-ala. Este equilíbrio no meio-campo tem sido essencial na manobra ofensiva da equipa e que tem permitido ao Rangers ser uma equipa incisiva com bola e compacta sem ela.

O segundo desafio, mais presente nos primeiros dois anos de Gerrard, prendia-se pela dependência excessiva do talento do ponta-de-lança Alfredo Morelos. Quando o colombiano estava lesionado, suspenso ou simplesmente em baixo de forma, toda a equipa acusava a falta de criatividade e, apesar da grande percentagem de posse de bola por jogo, não conseguia converter esse domínio em golos. Gerrard deu a volta a esse problema esta época, pedindo a Morelos para desempenhar um papel diferente. Em vez de ser a grande referência na frente de ataque e disputar bolas com os centrais de forma mais física, passou a jogar como elemento de apoio, mais próximo dos médios e de costas para a baliza. Movimenta-se para outras zonas do campo e atrai defesas com ele, permitindo mais golos aos seus colegas. Juntamente com os reforços Kemar Roofe, Ianis Hagi e também Ryan Kent, o ataque do Rangers ganhou um novo nível de imprevisibilidade, gerando espaços e desequilíbrios que não eram possíveis anteriormente. A equipa é capaz de acelerar o jogo rapidamente, até a partir da primeira fase de construção. Pressão, posse e velocidade são as ideias chave deste Rangers de Gerrard. Todas estas melhorias estão também evidenciadas estatisticamente. O Rangers detém atualmente uma média de 2.4 golos marcados e apenas 0.3 golos sofridos por jogo, tendo vencido na presente época 88% dos jogos, em contraste com os 72%, 61% e 55% de épocas anteriores. Gerrard acabaria por garantir o inédito título com ainda 7 partidas por disputar, tal foi o domínio do Rangers ao longo de todo o campeonato.
Paciência é uma virtude
O Rangers é um exemplo claro de que é fundamental ter paciência e dar tempo aos treinadores para trabalhar e desenvolver os seus projetos. O Rangers de Steven Gerrard foi apresentando melhorias incrementais ao longo de três épocas e apenas conquistou um título à terceira tentativa. O Rangers atual é um animal completamente diferente do Rangers recém-promovido, caótico e desorganizado aquando da chegada do inglês. O clube encontra-se financeiramente mais estável (fruto das receitas europeias), mais competitivo, dominador, experiente e com um grupo de trabalho mais coeso e rotinado. Terá o privilégio de ouvir o hino da Liga dos Campeões na próxima temporada pela primeira vez em muito tempo, reforçando simultaneamente os cofres do clube. Este era, em 2018, um dos projetos mais difíceis e desafiantes do futebol britânico. Steven Gerrard acordou um gigante adormecido, pegou-lhe pelos colarinhos, abanou e reconstruiu com tempo e método. Independentemente do que venha a seguir, será sempre o homem que impediu o 10º e deu o 55º.










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